“O fator violência
Falta de segurança já é o segundo motivo para brasileiros defenderem planejamento familiar
Por Maiá Menezes
A violência que assombra o cotidiano dos brasileiros é a segunda razão para a opção pelo planejamento familiar no país. Pesquisa feita para O GLOBO pelo Ibope-nova/sb Comunicação, nos dias 19 e 20 de junho, mostra que 20% dos entrevistados apontam o clima de insegurança como o motivo para ser a favor do uso de contraceptivos. A primeira razão é a condição econômica, de acordo com 58%. O temor pela degradação ambiental também aparece entre os fatores que levam à defesa do controle da natalidade: é a preocupação de 5% dos consultados pelo Ibope.
Moradora da Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, Adriene Lúcia de Leme Moraes, de 31 anos, criou regras para manter Mayara, de 11 anos, Marta, de 8, Matheus, de 6, e Marcos Jorge, de 4, protegidos do cotidiano beligerante da comunidade – onde a polícia matou, em confronto, 19 pessoas, há dez dias. Sai de casa apenas quando o clima “não está agitado”. Há uma ano, decidiu não ter mais filhos e recorreu a uma laqueadura de trompas, fornecida ilegalmente por um candidato a deputado.
– No lugar em que a gente mora é muito difícil criar filho. Todos os dias a gente enfrenta essa rotina de tiroteio.
Nenhum dos filhos que eu tive foi planejado. Mas não dá para ter mais. A gente deveria ter mais acesso a planejamento familiar, porque todo mundo tem o direito de escolher – diz Adriene, que não completou a 8asérie do ensino fundamental.
Laudicéia Mendes Batista, de 35 anos, moradora da favela do Grotão, diz que a violência trouxe traumas para sua vida. Com cinco filhos, entre 2 e 17 anos, ela criou um toque de recolher doméstico, que obriga todos a estarem em casa às 21h. Nessa rotina, afirma ela, não cabem mais filhos. Por isso, decidiu tentar a laqueadura, oferecida pela Secretaria Municipal de Saúde.
– É muita violência. Eu tento não passar meu medo para eles. Mas não dá para ter mais filhos – diz Laudicéia, que está desempregada.
Entre os 1.400 entrevistados, em consultas feitas por telefone, a inquietação com a violência é maior entre os menos instruídos (26% dos que cursaram até a 4ae 20% dos que foram até a 8a). Já a preocupação com a condição econômica é maior para os que têm nível de escolaridade superior (60%).
A dentista Anne Eugenia Nunes Borba, de 37 anos, desistiu da segunda gravidez ao fazer as contas. Casada com o advogado Mario Nunes Akiyama, de 31, ela diz que só engravidou pela primeira vez, de Mariana, há três anos, depois de comprar o apartamento e de conseguir dois empregos estáveis.
– Desde que ela nasceu, eu uso algum método de prevenção. A gente vive bem, tem condição de colocála numa boa creche. Mas sem extravagâncias.
O impacto de um filho no orçamento é profundo – diz Anne, que gasta cerca de R$ 1 mil por mês só com a creche. Ela mora na Tijuca, Zona Norte do Rio.
91% são a favor do planejamento
A grande maioria dos entrevistados pelo Ibope se diz a favor do planejamento familiar (91%). Apenas 6% afirmam ser contra. A pesquisa ouviu brasileiros em todo o país – a maior parte na região Sudeste (44%). A maioria tem filhos (68%) e tem vida sexual ativa (72%). Apesar do alto percentual que afirmou ter tido filhos planejados (63%), ainda é grande o índice dos que não planejaram (28%).
A demógrafa Suzana Cavenaghi, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, considera alto o percentual de entrevistados que dizem ter tido filhos não planejados. Ela ressalta, no entanto, que muitos não fazem porque não têm acesso aos métodos ou à forma de usá-los adequadamente, e não por serem contra.
– Ricos e pobres já não querem mais ter muitos filhos. A violência e o meio ambiente aparecerem como um fator dessa escolha é fruto da agenda do Brasil de hoje. De fato, a escolha é tomada por uma conjunção de fatores, em que o econômico prevalece – afirma Suzana, consultora da Pesquisa Nacional Sobre Demografia e Saúde da Mulher, realizada pelo Ministério da Saúde.
O gerente de projetos do Ibope, Maurício Garcia, considera “altíssimo” o percentual de quem é a favor da contracepção.
– Ainda assim, quase um terço diz não usar método algum. O que mostra que o entrevistado pode ser a favor, apenas em tese – diz Maurício.
A dona-de-casa Alessandra Félix, de 28 anos, moradora de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, conta que sempre tentou prevenir a gravidez. Mas até agora não foi bem sucedida: – Nenhum dos meus três filhos foi planejado. Eu usava o anticoncepcional, mas às vezes esquecia. Agora, não estou usando pílula, mas estou à espera da laqueadura – conta Alessandra Félix..
A pílula, segundo a pesquisa, é usada por 37% dos que disseram ter vida sexual ativa. A camisinha é apontada como preferência nacional (48% disseram usar). A “tabelinha” aparece como opção para 14% dos consultados.
Já a pílula do dia seguinte, tomada após a relação sexual como último recurso para evitar a gravidez, é a escolha de 9%. Entre os que se previnem, 33% dizem usar apenas um método.
– A melhor forma de se prevenir é usar mais de um contraceptivo. É preciso se preocupar com a prevenção à Aids. Além disso, a pílula do dia seguinte deveria ser usada como recurso excepcional, porque tem efeitos colaterais – afirma a pesquisadora Sônia Corrêa, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).
Fiéis ignoram preceitos religiosos
Católicos, evangélicos e seguidores de outras religiões não rezam pela cartilha de igrejas quando o assunto é o planejamento familiar. Apenas 10% dos entrevistados pelo Ibope dizem que seguiriam a norma da religião, caso ela proibisse o uso de métodos anticoncepcionais. Setenta e três por cento simplesmente ignorariam a orientação.
– Isso confirma que as pessoas têm parâmetros diferentes dos das igrejas em relação à reprodução. É preciso dizer à população: quando você concorda com a proibição da camisinha, colabora para a disseminação da Aids. A religião está se distanciando da realidade das pessoas – sustenta a socióloga Dulce Xavier, ativista da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, com sede em São Paulo.
Os católicos ouvidos pelo instituto demonstram clara dissonância com os preceitos defendidos com ênfase pelo Papa Bento XVI. Para 49% dos entrevistados, a Igreja é a favor do planejamento familiar. Bento XVI, em seus discursos durante a passagem pelo Brasil, em maio, foi claro no discurso contra o sexo fora do casamento e contra o uso de métodos anticoncepcionais, inclusive a camisinha.
O Ibope mostrou ainda que 64% dos evangélicos também identificam nos discursos dos pastores nos templos posturas favoráveis ao planejamento familiar.
– Em alguns países, principalmente naqueles onde a fecundidade é alta, a religião segura e molda o comportamento dos casais. Aqui o catolicismo é mais light – afirma a demógrafa Suzana Cavenaghi.
– Na prática, os católicos estão fazendo ouvido de mercador – concorda Ana Cristina Gonçalves, integrante do núcleo de Inovação e Conhecimento da agência de publicidade noa/sb, especializada em comunicação de interesse público.
A pesquisa do Ibope mostrou ainda uma tendência à aceitação maior do aborto nos casos em que o feto corre risco de vida (para 69% a favor e 30% contra). Quando as mulheres enfrentam esse perigo, o percentual favorável é de 59% e contrário, de 34%. Quarenta e nove por cento aceitariam o aborto nos casos em que a gravidez é resultado de estupro, e 43% seriam contrários.
Já quando é fruto de falha de anticoncepcionais ou de opção da mulher por falta de condições financeiras para criar o filho, a reprovação é majoritária: 86% no primeiro caso e 84% no segundo.
Para a pesquisadora Sônia Corrêa, os obstáculos para o uma política bem sucedida de planejamento familiar no Brasil não estão relacionados à fé: – Os entraves não são religiosos. Eles estão nas lacunas das políticas públicas.
Em 2006, foram distribuídos 14,8 milhões de anticoncepcionais no país. O Ministério da Saúde anunciou, há um mês, que começaria ainda este ano a monitorar o fornecimento de medicamentos às prefeituras.”
A matéria da repórter Maiá Menezes foi publicada em O Globo no dia 08/07/2007