Mulheres que tiveram anorexia comentam novo filme da Netflix
Por Mariana Versolato
Publicado na Folha de S. Paulo
A primeira cena de “O Mínimo para Viver” (“To the Bone”, originalmente), que foi lançado pela Netflix no último dia 14, adverte: “este filme inclui representações realistas que podem ser perturbadoras”.
O aviso também informa que a obra foi criada em parceria com pessoas que sofreram de distúrbios alimentares, o que não o livrou das críticas de ter romantizado as doenças ou citado os macetes que quem tem os transtornos conhece e usa para perder peso.
Sobrou também para Lily Collins, a atriz que interpreta a protagonista Ellen –uma jovem artista que tenta mais uma vez se tratar da anorexia, desta vez em uma clínica fora do padrão.
A própria atriz já tinha sofrido de transtornos alimentares e emagreceu tremendamente para fazer o papel –a ponto de estrelar as tais cenas perturbadoras do aviso inicial. Collins se defendeu dizendo que a perda de peso ocorreu com ajuda de nutricionista. Também disse em entrevistas que, apesar de ter sido assustador voltar àquele estado mental, a experiência, no fim, foi terapêutica.
Nas redes sociais, porém, houve também quem elogiasse o filme justamente pelo retrato cru e verdadeiro do problema –a obra é semiautobiográfica, escrita e dirigida por Marti Noxon, que também teve distúrbio alimentar.
“Tenho pacientes que gostaram, que criticaram, que me perguntam se o relato é correto. O importante é discutir com um especialista o que se viu, refletir sobre se o filme acrescenta algo”, diz Táki Cordás, coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do HC da USP.
A Folha ouviu duas mulheres que tiveram distúrbio alimentar para comentar o filme.
A estudante de medicina Julia Carvalho, 21, de Niterói (RJ), começou a ter transtornos alimentares aos nove anos. Hoje, faz sucesso com o perfil no Instagram @viver.rezar.amar, no qual fala sobre suas dificuldades e vitórias em busca da saúde.
“Comecei a ter transtorno alimentar quando tinha nove anos. Menstruei aos oito e com nove já estava com corpo formado. Me sentia estranha, fora do patamar da minha sala de aula. De forma natural, não sei nem explicar como, comecei a a me privar de comida. Nem sabia que isso tinha nome.
Achei que não deveria falar com meus pais e fui buscar ajuda na internet. Mas em vez de ajuda o que achei foram blogs pró-anorexia, que ensinavam macetes de como não comer.
Fui ficando mais velha e cada vez mais perfeccionista, o que tem muito a ver com a anorexia. Entrei na noia que só podia tirar nota 10 e comecei a descontar o estrese na comida. Comia quilos e quilos de comida de uma vez. Fui fazendo isso cada vez mais e comecei a engordar.
Aí então aprendi que poderia vomitar pra ficar magra. Misturei todos os transtornos. Às vezes comia só uma tangerina e vomitava para não engordar. Como comecei a ficar com muita dor de estômago, parei de comer para parar de vomitar e aí voltou a anorexia.
Fiquei muito mal. Não menstruei por meses, a unha não crescia, o cabelo caía, começaram a aumentar os pelos no corpo como forma de proteção. Fui ficando cada vez pior, entrei em depressão e pensei a me matar.
É louco porque ao mesmo tempo você quer ficar magra, mas tem vergonha dos ossos, até porque você acha que não está magra suficiente. Todo mundo falava que eu estava feia. Perdi o amor próprio, não queria sair de casa.
Comecei então a fazer reeducação alimentar. Comecei a ganhar de peso, mas ainda assim ficava dias sem comer. Prestei vestibular para medicina e o estresse me levou de volta para a compulsão de comer muito e depois vomitar. Comecei a correr pra melhorar a ansiedade, mas também era uma forma de emagrecer. Sempre desmaiava pela rua.
Passei a vomitar sete vezes por dia, em todas as refeições. Tive gastrite e úlcera. E entrei na segunda depressão. Estava cansada dessa vida de sofrimento e resolvi me despedir de todo mundo. As pessoas ao redor também sofrem muito. Mas sou católica e isso me ajudou a não me matar.
Falei com a minha mãe e ela ficou assustada. Comecei a fazer tratamento médico e o remédio foi essencial pra mim. Veio a primeira crise recaída, mas a gente tem que aprender a cair e levantar. Estou há três meses sem nenhum episódio. Pode parecer pouco, mas para quem vivia isso todo dia é uma vitória absurda.
Estava jantando quando vi o filme e perdi a fome. E isso vindo de uma pessoa que hoje está melhor, em tratamento.
O filme não é de todo ruim, porque retrata bem quem vive com o transtorno, mas acho que também dá muita dica pra quem já está com a cabeça suscetível. Não é uma prestação de serviço. Quando vi a personagem principal fazendo exercício excessivo, pensei: “ela lá se exercitando e eu aqui perdendo tempo”. Não penso mais em ser magra esquelética, mas me veio a dúvida: será que eu não era mais bonita naquela época?
Tenho certeza que as cenas da personagem muito magra servirão de inspiração para muitas meninas. Quando eu era mais nova, lembro de ter visto na capa de uma revista uma modelo que morreu porque só comia maçã e bebia água. Pensei: “ela emagreceu fazendo isso, vou fazer também”. Ignorei que o fato que ela tinha morrido. Também descobri o que era bulimia lendo uma revista, e aí comecei a desenvolver a técnica.
Poderiam também ter informado canais de ajuda no final do filme. Às vezes a pessoa tem vergonha de contar para a família.
Por outro lado, é positivo o fato de trazer o assunto à tona. Quando meus pais descobriram, a primeira coisa que fizeram foi me deixar de castigo. Na cabeça deles, eu aprenderia a lição e nunca mais faria isso. Mas é muito maior que você. Não existe a palavra força de vontade. Meus pais não sabiam que era algo que precisava de tratamento, e o filme mostra que ela era uma pessoa doente. Não é só frescura, não é só comer -a comida simplesmente não desce.
O filme também procurou falar de outros transtornos além da anorexia, como a compulsão alimentar, que atinge muitos obesos. Mostra ainda que não é um problema só de menina. O personagem Luke, inclusive, ficava feliz quando ganhava peso. Acho que o personagem dele funciona para as pessoas manterem a esperança.
Hoje rezo para que um possível desequilíbrio emocional não me faça descontar na comida, para comer sem contar calorias.
Fortaleci muito a minha fé e a meditação. Descobri um método de relaxar e respirar. Às vezes me pego indo no caminho do transtorno alimentar e volto. Meu maior presente é minha conta no Instagram. Criei para promover saúde, bem-estar e aceitação do seu próprio corpo. Recebo muitas mensagens calorosas, pedidos de ajuda. Quando penso em dar uma recaída, me falam ‘não desista, você é minha inspiração’. Penso que tenho que ser forte para ajudar as pessoas a viverem.”
“Para a estudante de psicologia Tainá Perrucci, 23, que começou a ter transtorno alimentar por volta dos 11 anos, o filme é um relato sincero e forte –e é bom que seja assim. “As pessoas precisam saber como é essa realidade.” Ela escreve sobre o assunto no site Sobre Nossa Visão Distorcida.
“Sempre fui magra e nunca tive tendência para engordar, mas, depois que menstruei e comecei a encorpar, achava que tinha que me preocupar com isso.
Hoje reconheço que era medo de crescer. Se eu engordava alguns gramas já ficava preocupada. Não tinha um objetivo maior, só queria ter controle –do meu corpo, do meu peso, das calorias.
Era também uma forma de ter autonomia. Sempre fui a bonequinha da casa e me sentia muito sufocada, queria ter mais liberdade.
Tinha gastrite e, quando ficava nervosa, o estômago atacava. Um dia fiquei doente, fui pra escola sem comer e me senti muito bem, mais leve. Fiz o mesmo no dia seguinte. Ia vendo até quando conseguia ficar sem comer, fazia apostas comigo mesma. Isso me aliviava de alguma forma.
Chegou num ponto em que não conseguia mais comer. Às vezes comia, mas vomitava. Fui me pesando e gostava de ver que estava emagrecendo. Não fazia metas, mas queria sempre perder mais um quilo. Virou um vício e não conseguia mais parar. Também fazia exercícios de forma compulsiva, acordava no meio da noite para praticar. Hoje não sei como fazia para aguentar tanta coisa em jejum.
Como eu era muito tímida, sempre na minha, meus pais demoraram para ver a diferença. Tudo veio à tona quando a psicóloga chamou meus pais. Aos mesmo tempo que eu não queria parar, estava gritando por ajuda. Queria ficar mal para eles verem que eu estava mal, porque não conseguia falar de outro jeito.
Eles não fizeram alarde. Perguntaram o que poderiam fazer para me ajudar, mas eu não respondia a nada, só intensificava o problema.
Viajamos juntos para a praia e eu só pensava em comida, em caloria, em como disfarçar que não estava comendo. Levantava da mesa do restaurante e vomitava. Quando voltamos, foi um inferno, brigavam muito comigo. Os dois ficaram desesperados. Me levaram numa nutricionista, mas eu não obedecia, tinha pavor de engordar. Era muito fechada e tinha medo de perder a única coisa que me dava alívio. Sempre que comia entrava em desespero, me imaginava explodindo.
Quanto pior eu me sentia, mais eu achava que merecia. Dava desespero de não lembrar como era comer, olhava pra pessoas e pensava: como comem e param? Comecei a ter compulsão, comia um bolo inteiro. Perdi a referência.
Lembro que um dia vi meus pais muito tristes, desolados. Meu pai perguntou o que poderia fazer para me ajudar e eu falei que queria recomeçar minha vida. Vi que estava doente e disse que sozinha não ia conseguir, que precisava que me amarrassem para eu voltar a comer.
Fui internada durante uma semana e chorava muito depois de comer. Tinha ficava viciada em vomitar, me contorcia chorando porque queria muito. Mas estava com um superapoio da minha psicóloga, dos psiquiatras, nutricionistas, da terapeuta ocupacional. Os profissionais me pesavam mas não me diziam o peso.
Aos poucos fui melhorando também com ajuda de remédios. Ganhei mais liberdade e autonomia em casa e sabia que se parasse de comer ia parar no hospital de novo. Voltei a querer a viver. Aos poucos fui introduzindo coisas novas na minha alimentação com ajuda da nutricionista até chegar num ponto em que passei a comer de tudo.
O filme tem detalhes que só quem viveu aquilo sabe. A cena dela pedindo para a mãe alimentar me emocionou muito. Quase toda anoréxica tem uma relação meio esquisita com a mãe, quer que a mãe acolha, quer voltar a ser um bebê. Por isso a gente inibe os sinais de crescimento, perde peito e bunda.
Não é romantizado, é bem bruto e sincero com detalhes. Os métodos citados são bem conhecidos. Ela diz que tem medo de começar a comer e nunca mais parar, e é assim mesmo.
Chorei muito, me vi muito na personagem principal. Fiquei baqueada depois –não com medo de o transtorno voltar, mas emocionada de lembrar como eu era e de pensar em como estou hoje. A personagem não sabe o que está acontecendo, não sabe por que não consegue melhorar. É só comer, mas ao mesmo tempo não é. É muito difícil explicar para quem está de fora.
Hoje vejo que a comida é só um sintoma. O tratamento foca em comer, mas o problema é muito anterior. Se for melhorando você vai naturalmente comendo. Achei forte, mas achei bom que seja forte. Para quem está com anorexia, a imagem da atriz magra é só mais uma imagem que ela vê. As pessoas têm que saber a realidade. Achei a dinâmica familiar conturbada bem representada. Ela precisou ser acolhida e respeitada para começar a melhorar.”
Entenda as doenças
Transtornos precisam de cuidado multidisciplinar e têm risco de morte
ANOREXIA NERVOSA
Caracteriza-se por uma procura incansável pela magreza, levando o paciente a uma severa e autoinduzida perda de peso. Há distorção de imagem corporal e os ciclos menstruais ficam interrompidos por no mínimo três meses
BULIMIA NERVOSA
O paciente ingere compulsiva e indiscriminadamente grandes quantidades de alimentos em um período muito curto. Isso é seguido por culpa, vergonha e medo de engordar, levando o paciente a induzir o vômito
Causas
Não há uma única causa; a doença é multifatorial.
Fatores genéticos
Pesquisas indicam maior prevalência de transtornos alimentares em algumas famílias.
Fatores biológicos
Neurotransmissores reguladores da fome alterados estão ligados a transtornos alimentares.
Fatores socioculturais
A obsessão em ter um corpo magro e perfeito é reforçada no dia a dia da sociedade ocidental.
Fatores familiares
Dificuldades de comunicação dentro da família e interações conflituosas.
Fatores psicológicos
Baixa autoestima, rigidez comportamental e distorção cognitiva podem preceder quadro.