Kofi Annan pede legalização

26/02/2016

Na minha experiência, boas políticas públicas são aquelas que são concebidas de forma não passional, baseadas na análise do que, na prática, funcionou ou não. Políticas públicas baseadas em pressupostos comuns e sentimentos populares podem tornar-se a receita para prescrições errôneas e intervenções equivocadas.

E em nenhum lugar esse divórcio entre a retórica e a realidade é mais evidente do que na formulação das políticas globais de drogas, onde com freqüência emoção e ideologia, e não as evidências, prevalecem.

Tome-se o caso do uso medicinal da maconha, por exemplo. Ao olhar atentamente para a evidência que vem dos Estados Unidos , sabemos agora que a legalização do uso da maconha para fins médicos não levou a um aumento no seu uso por adolescentes, ao contrário do que haviam argumentado os opositores da proposta. Em contrapartida, o número de mortes por overdose de heroína nos EUA entre 2010 e 2013 quase triplicou, apesar da lei e punições severas em relação ao uso de heroína não terem sido alteradas.

Este ano, entre os dias 19 e 21 de abril , a Assembléia Geral das Nações Unidas vai realizar uma sessão especial sobre as drogas e o mundo vai ter a chance de mudar de rumo. Enquanto nos aproximamos de tal evento, temos de nos perguntar se estamos no caminho à uma política acertada. Mais especificamente, como é que vamos lidar com o que o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime chamou de “as consequências não intencionais ” das políticas dos últimos 50 anos, que contribuíram, entre outras coisas, para criar um vasto mercado criminal internacional de drogas que alimenta a violência, a corrupção e instabilidade? Basta pensar nos 16.000 assassinatos no México, em 2013, muitos dos quais estão diretamente ligados ao tráfico de drogas.

 

Uma guerra contra pessoas

Globalmente, a “guerra às drogas” não foi bem sucedida. Alguns estimam que a imposição da proibição mundial custa pelo menos 100 bilhões de dólares por ano, ao mesmo tempo em que ao redor de 300 milhões de pessoas atualmente usem drogas em todo o mundo, contribuindo para um mercado ilícito global, com um volume de negócios de 330 bilhões de dólares por ano, um dos maiores mercados de commodities do mundo.

A proibição teve pouco impacto sobre a oferta de ou a procura por drogas. Quando a aplicação da lei tem sucesso em uma área, a produção de drogas simplesmente se move para outra região ou país, o tráfico de drogas move-se para uma outra rota ou os usuários de drogas mudam para uma droga diferente. A proibição não reduziu significativamente o uso de drogas. Estudos têm consistentemente falhado em provar a existência de uma ligação entre a dureza da legislação sobre as drogas em um país e os seus níveis de uso de drogas. A criminalização generalizada e punição de pessoas que usam drogas, as prisões super lotadas, significam que a guerra contra as drogas é, de forma significativa, uma guerra contra os usuários de drogas – uma guerra contra o povo.

A África é, infelizmente, um exemplo desses problemas. A Comissão África Ocidental sobre Drogas, convocada pela minha fundação, relatou no ano passado que a região tornou-se não só um importante ponto de trânsito entre os produtores da América Latina e consumidores na Europa, mas também uma área onde o consumo está aumentando. O dinheiro proveninente do comércio de drogas e a criminalidade associada a ele, estão promovendo a corrupção e a violência. A estabilidade dos países e da região como um todo está sob ameaça.

Eu acredito que as drogas destruíram muitas vidas, mas as políticas governamentais erradas têm destruído muitas mais. Nós todos queremos proteger nossas famílias do dano potencial das drogas. Mas se nossos filhos desenvolvem um problema com drogas, com certeza vamos quero que eles sejam cuidados como pacientes que necessitam de tratamento e não tachados como criminosos.

 

Pare de estigmatizar e comece a ajudar

A tendência em muitas partes do mundo a estigmatizar e encarcerar os usuários de drogas tem impedido muitos de procurar tratamento médico. Em que outras áreas da saúde pública criminalizamos os pacientes que precisam de ajuda? Medidas punitivas enviaram muitas pessoas à prisão, onde seu uso de drogas piorou. Um registro criminal para um jovem por um delito de drogas menor pode ser uma ameaça muito maior para o seu bem -estar do que o uso de drogas ocasional.

De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre Estupefacientes, a intenção original da política de drogas era proteger a “saúde e bem-estar da humanidade.” Sendo assim, precisamos refocar a política nacional e internacional de drogas de acordo com este objetivo fundamental.

Isso nos obriga a tomar quatro medidas críticas .

Primeiro, devemos descriminalizar o uso de drogas pessoal. O uso de drogas é prejudicial e reduzir esses danos é uma tarefa para o sistema de saúde pública, não para os tribunais. Isto deve ser acompanhado do fortalecimento dos serviços de tratamento, especialmente em países de média e baixa renda.

Em segundo lugar, temos de aceitar que um mundo livre de drogas é uma ilusão. Devemos concentrar-nos em garantir que as drogas causem o menor dano possível. Medidas de redução de danos, tais como programas de troca de agulhas, pode fazer uma diferença real. Na Alemanha, por exemplo, essas medidas foram tomadas há décadas e o nível de infecções por HIV entre usuários de drogas injetáveis ​​está perto de 5%, em comparação com mais de 40% em alguns países que resistem a esta abordagem pragmática.

Em terceiro lugar, temos de olhar para a regulamentação e educação pública, em vez de a supressão total de drogas, que sabemos que não vai funcionar. As medidas tomadas com sucesso para reduzir o consumo de tabaco (uma dependência muito poderosa e prejudicial) mostram o que pode ser alcançado. É regulação e educação, não a ameaça de prisão, o que reduziu o número de fumantes em muitos países. Impostos mais elevados, restrições à venda e campanhas anti-tabagismo eficazes foram o que realmente produziram os resultados acertados.

A venda legal da maconha é uma realidade que começou com a Califórnia legalizando a venda para uso médico em 1996. Desde então, 22 estados dos EUA e alguns países europeus seguiram o exemplo. Outros foram mais longe ainda. Uma iniciativa eleitoral que venceu por maioria nas urnas fez com que o Colorado legalizasse a venda de maconha para uso recreativo. No ano passado, o Colorado recolheu cerca de US $ 135 milhões em impostos e direitos de licença relativos às vendas de maconha legal. Outros tomaram rotas menos comerciais. Os usuários de maconha dos clubes sociais da Espanha podem cultivar e comprar maconha através de organizações não-comerciais de pequeno porte. E o Canadá parece susceptível de se tornar o primeiro país do G7 a regular a venda de cannabis no ano que vem.

 

Regulamentação protege a saúde

Tendências iniciais mostram-nos que onde a maconha foi legalizada não houve nenhuma explosão no uso de drogas ou criminalidade associada à droga. O tamanho do mercado negro foi reduzido e milhares de jovens foram poupados de terem abertas fichas criminais. Mas um mercado regulamentado não é um mercado livre. Precisamos pensar cuidadosamente sobre o que precisa ser regulado, e o que não. Enquanto a maioria do consumo de maconha é ocasional, moderado e não associado a problemas significativos, não deixa de ser precisamente por causa de seus riscos potenciais que a regulamentação é necessária.

E, portanto, o quarto e último passo é reconhecer que as drogas devem ser reguladas precisamente porque são arriscadas. É hora de reconhecer que as drogas são infinitamente mais perigosas se deixadas exclusivamente nas mãos de criminosos que não têm preocupações com a saúde e segurança. A regulamentação protege a saúde. Os consumidores precisam estar cientes de que eles estão consumindo e ter informações claras sobre os riscos à saúde e como minimizá-los. Os governos precisam ser capazes de regular os fornecedores e estabelecimentos de acordo com a quantidade de dano que a droga pode causar. As drogas com maior potencial de dano nunca devem estar disponíveis “over the counter” (no balcão), mas apenas através de prescrição médica para as pessoas registradas como usuários dependentes, como já acontece na Suíça.

Políticas de drogas devem ser baseadas em evidências científicas e na nossa preocupação com a saúde e os direitos humanos. Isto significa garantir que menos pessoas morram de overdose de drogas e que criminosos por pequenos delitos não acabem na cadeia onde seus problemas com drogas pode piorar. É hora de uma abordagem mais inteligente em relação às políticas de drogas, vista sob o ponto de vista da saúde pública.

E é hora de países como a Alemanha, que adotaram melhores políticas em casa, sairem em defesa da mudança das políticas também no exterior. A sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o problema mundial da droga seria um bom lugar para começar a fazê-lo.

 

*Artigo traduzido pelo colaborador Felipe Elias