Nos próximos meses, a história de Viveros cairia como um castelo de cartas. Nenhum vizinho, mesmo os vários que se sobressaltaram com os tiros nas primeiras horas da manhã do fatídico dia, viu os supostos assaltantes deixando a casa.
As marcas da entrada na casa da família nunca confirmaram que houve arrombamento. As empregadas acharam uma espingarda no armário de Viveros da qual ninguém jamais havia ouvido falar.
O próprio cairia em contradições ao ser chamado para depor uma segunda vez à polícia.
Ainda retomando os movimentos básicos do corpo e reprendendo a viver em cadeira de rodas, Penha diz que a crueldade continuava. Na volta para casa do hospital, ainda no carro, Viveros lhe ordenou que não recebesse visitas nem de amigos nem de parentes. Aos amigos que queriam visitar ou ajudar financeiramente, ele dizia que parassem com “mimos” e “mariconadas”.
“Eu fiquei em uma espécie de cárcere privado”, conta Penha. “Minha família ligava e eu inventava desculpas, dizia ‘estou cansada’… para obedecer às ordens dele”, afirma a ativista.
Mas foi só quando Viveros tentou eletrocutá-la, levando-a para baixo de um chuveiro elétrico, que Penha decidiu que era hora de abandonar o casamento de vez.
19 anos e seis meses
“Passei 19 anos e seis meses lutando para ele ser preso, e durante esse tempo ele foi julgado e condenado duas vezes, e duas vezes saiu do Fórum em liberdade por conta de recursos”, conta Penha. Foi o primeiro julgamento fracassado, oito anos depois, que a levou a contar a história em um livro, Sobrevivi, Posso Contar.
No lançamento, ela disse que o homem que escapara dos tribunais brasileiros não deixaria de ser condenado por qualquer leitor que ouvisse sua história. Abraçado por duas organizações internacionais de direitos humanos – Cejil (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional) e Cladem (Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher) -, o caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998.
Ao condenar o Brasil, em abril de 2001, a Corte determinou que o país prendesse Viveros e recomendou que fossem garantidas mais proteções legais para as mulheres. O ex-deputado cearense Mário Mamede recorda quando alguém de sua assessoria lhe procurou em 2002 dizendo que o crime de Viveros estava para prescrever e que a determinação do tribunal internacional seria descumprida.
A razão era que a Justiça cearense não conseguia localizar Viveros. “Como assim?”, surpreendeu-se Mamede, que acompanhou o caso como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará. “Todo mundo sabe que ele vive em Natal e dá aula na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.”
Ali mesmo ligou para o reitor da universidade e obteve o endereço do professor, que foi então notificado. Julgado novamente, Viveros foi condenado a oito anos de prisão – ficou menos de dois.
“Ele cumpriu muito pouco da pena, porque o Tribunal de Justiça do Ceará abateu o tempo que ele passou com recursos”, contou Mamede à BBC Brasil.
“Mas nós ficamos aliviados, porque ele ia ficar em total e absoluta impunidade, como se o fato não tivesse existido. Para a Justiça, ele seria um homem livre e limpo. Com a condenação, mesmo tendo cumprido só uma pena simbólica, ele é um homicida.”
Lei Maria da Penha
No dia 7 de agosto de 2006, cinco anos depois da condenação internacional, o Congresso aprovou a Lei 11.340.
“Essa é uma vitória democrática de todas as mulheres do nosso Brasil”, discursou o então presidente Lula após a aprovação do projeto, em uma cerimônia que contou com a presença da própria Penha.
“Mas se for possível dar um nome a essa lei – e eu acho que nos já a batizamos -, eu acho que essa lei deveria se chamar Maria da Penha.”
A lei já nascia sendo considerada pela ONU como um dos mais bem sucedidos casos de resposta à violência doméstica. Ela ampliou o conceito de violência contra as mulheres, que agora passava a ser não apenas física e sexual, mas também moral e psicológica – uma forma de combate à dinâmica de isolamento, humilhação e manipulação das vítimas por parte dos seus agressores.
A legislação elevou as penas e determinou a criação de infraestrutura de atendimento a mulheres agredidas, como abrigos especiais e delegacias de mulheres permanentes.
Foram também estabelecidos instrumentos legais para que os juízes pudessem tomar medidas urgentes, como tirar as mulheres de casa sem prejuízo para guarda dos filhos, garantir a permanência delas no emprego e determinar o afastamento físico do agressor.
Há dez anos anos em vigor, a legislação colaborou para uma redução de 10% no número de mulheres assassinadas em decorrência da violência doméstica em 2015, segundo ativistas.
Mas Penha, que aos 71 anos continua cruzando o Brasil dando palestras e participando de eventos, diz que ainda há muito onde avançar. Só recentemente a infraestrutura de atendimento chegou a todas as capitais dos Estados, mas ainda é inexistente no imenso interior do país.
“Hoje em dia a violência continua. Elas só estão denunciando nos municípios que têm a política pública – o Centro de Referência da Mulher, a Casa Abrigo, a Delegacia da Mulher”, diz à BBC Brasil.
“Mas tem muita mulher que acha que só é violência quando ela está machucada. Ela não entende que a violência doméstica também é psicológica, moral, sexual.”
Penha se diz honrada com a “confiança” que muitas depositam nela. “Muitas mulheres me dizem: ‘Sem a sua lei, eu já estaria morta’. É uma lei necessária, porque nenhuma mulher merece viver sofrendo.”