Por que o feminismo não é uma ‘causa conveniente’
Em uma semana em que o assunto “empoderamento feminino” causou burburinho no mercado, a consultoria Think Eva apresentou um report para discutir a representação da mulher na publicidade e promover reflexões a respeito de como as marcas devem se posicionar hoje e em um futuro breve, com o desenvolvimento de uma nova geração de consumidoras, com mais consciência de seu papel e de suas demandas. Intitulado “Compromisso inegociável”, o trabalho trouxe uma linha de tempo que mostra a longa luta do feminismo para gerar mudanças na sociedade, dentro e fora da propaganda.
O resgaste histórico compreende o período entre 1670 (Dandara de Palmares liderava o exército feminino que existia no Quilombo de Palmares) e os dias atuais. Parte dele destaca o antagonismo entre marketing e feminismo. Esses dados podem ser consultados no site da consultoria (clique aqui para conferir).
O olhar sobre o passado é importante para dar a dimensão do desafio que existe hoje e que vem consolidando um movimento que ganha força ano após ano. “Existe muito boa intenção por parte das marcas, mas é preciso pensar o que há de real impacto”, observa a publicitária Nana Lima, uma das fundadoras do Think Eva.
Nos anos 1900, conforme o documento, mulheres de vários países começaram a se organizar para debater direitos e estratégias. Enquanto isso, os anúncios da época retratavam apenas esposas, donas de casa, personagens submissas e de aparência caucasiana. Desse modo, começaram a ser estabelecidos estereótipos que duraram por muito tempo. Uma década depois, campanhas faziam troça da luta pelos direitos das mulheres que, nesse momento da história – quando estava para eclodir a Primeira Guerra Mundial, estavam mais presentes no mercado de trabalho e passavam ser responsáveis pelo sustento da família.
Análises assim, comparando os períodos e as atitudes das marcas, se sucedem ao longo dessa extensa linha do tempo. “O marketing fez leituras muito equivocadas da conquista de direitos das mulheres”, afirma Nana. E, no caso da população negra, por muito tempo ela quase não foi retratada. A partir dos anos 2000, quando as redes sociais começam a surgir, ganha intensidade a necessidade de as marcas terem propósito. Mas, segundo o report, ainda havia certo desprezo pelas pautas feministas. “Não dizemos que a internet deu voz às mulheres. Elas já tinham. O que aconteceu é que o feminismo teve sua voz amplificada”, salienta. Nana observa que o feminismo é interseccional. Tem diversos recortes e lutas, com variantes para raça, tipos de corpos, orientação sexual, classe social, deficiências. Ou seja, não se trata exclusivamente de uma batalha por igualdade salarial.
Também sócia da Think Eva, a jornalista Maíra Liguori destaca que o consumo não pode ser visto somente como um ato de compra. “É mais postura e jeito de estar no mundo”. Com a consultoria atuando no mercado há pouco mais de dois anos, ela colheu experiências com as marcas que buscaram adentrar nas questões do feminismo. Não é um processo simples e tampouco existem fórmulas únicas. “Empresas não devem virar ONGs. Mas quem não entrar no movimento, não vai ter lugar nele”, completa.
O Think Eva reforça que o empoderamento feminino é um caminho sem volta. Porque cresce. Porque já está transformando o mundo. E porque não é nicho. Como salienta Maíra, há uma ampliação de consciência e as mulheres estão reconhecendo mais seu lugar no mercado. Estudos estão demonstrando o impacto na economia se houver maior igualdade. Um deles indica que, se elas tivessem mais participação, o PIB de países como EUA e Japão subiriam, respectivamente, 5% e 9%. Por tudo isso, anunciantes devem se preparar mais para estes tempos. “O feminismo não é uma causa conveniente. É um compromisso inegociável. Marcas são agentes da sociedade. E comunicação de marca hoje é comportamento de marca”, argumenta Maíra.
Campanhas que refletem novas posturas
O report do Think Eva dá destaque a algumas ações e campanhas que demonstram um novo posicionamento de marcas. Entre elas, está a postura da Skol, que reconheceu seu passado machista, fazendo uma espécie de mea culpa. Com “Re-poster”, a cervejaria convidou oito artistas mulheres para redesenharem velhas peças sexistas, que não representam mais os valores da marca (leia detalhes aqui).
Também foram elogiadas campanhas feitas para Ariel na Índia e pela P&G, que trouxeram um recorte racial para a comunicação. Outra menção foi para “Like a Girl”, de Always.
Publicado no CCSP
Uma marca que se posicionou no mercado, com a consultoria da Think Eva, foi a Avon. Rafaella Gobara, senior digital manager da empresa, foi uma das profissionais que colaboraram com a produção do relatório. Durante a apresentação do trabalho, Rafaella revelou que uma frase que ouvia constantemente na companhia era “A gente já tentou fazer isso antes“. Com isso, demonstrou que, mesmo para uma marca que já falava com mulheres, a questão exigia mais debates internos. Mas os resultados do mergulho que fizeram foi ter conquistado a adesão do público. “A Avon voltou a ser falada“, disse. Entre as campanhas recentes está um filme feito para Color Trend (#EAiTaPronta) que traz Pabblo Vittar como uma das protagonistas.
https://www.youtube.com/watch?v=SzLSxwAXL_o
Estruturas em transformação
Questionada sobre o que costumam encontrar quando são procuradas pelas companhias, Nana conta que é comum se depararem com equipes não capacitadas ou que não olham seriamente para o assunto. Há casos em que há uma pessoa preparada, porém não há mais profissionais engajados desse modo. Um exemplo de pergunta que costumam enfrentar é “Por que devo colocar uma mulher gorda?”. Para algumas empresas, o tema pode parecer moda. E não é raro a consultoria ser abordada quando a campanha já está pronta. “Não queremos dar um selo feminista. Se não for pilar no branding da marca, não será algo verdadeiro. É preciso trabalhar desde o briefing”.
Nana diz que há alguma resistência no mercado em compreender a necessidade de ajuste de posturas e de estruturas. Entrevista divulgada no início da semana pela BBC com Washington Olivetto, um dos grandes nomes da publicidade brasileira (leia aqui), evidenciou como o feminismo tem importantes lutas a travar no setor. A entrevista gerou diversas manifestações nas redes sociais, com muitas profissionais criticando o posicionamento de Olivetto, que declarou já trabalhar com o feminismo. Ele colocou o termo “empoderamento feminino” entre os clichês constrangedores da indústria, afirmando que o tema entra em qualquer reunião, e chegou a mencionar uma palestra que fez no passando, quando comparou mulheres e Porsche, referindo-se a uma história “aparentemente machista”, o que teria arrancado gargalhadas à época.
A Think Eva criticou o teor da entrevista nas redes sociais. “Sim, já se abordou empoderamento feminino antes, mas com um olhar masculino. E, quando se fala de uma campanha como o primeiro sutiã, isso não é empoderamento. Temos uma cena de objetificação da mulher, de uma menina”, rebate Nana. Nana, entretanto, reconhece que há gente nova entrando no mercado trazendo um entendimento mais atual da questão.