11/08/2016

Olimpíadas

Máscaras da esgrima escondem histórias fortes.

As fortes atrás das máscaras

11/08/2016
Ibtihaj Muhammad, esgrima, Estados Unidos (Foto: Sean M. Haffey / Getty Images )

Ibtihaj Muhammad esconde os cabelos com o hijab: olhos falam tanto quanto a voz (Foto: Sean M. Haffey / Getty Images )

Máscaras escondem histórias fortes no esporte que quase ninguém vê

A pioneira americana com o hijab, a ucraniana que boicotou a Rússia, a tunisiana que se negou a enfrentar israelense: esgrima mostra voz feminina com política e ativismo

Por Alexandre Alliatti do Rio de Janeiro.
Publicado no Globo Esporte em 11/08/2016

É sorte das adversárias que Ibtihaj Muhammad jogue de máscara. Ela tem olhos tão expressivos, tão profundos, que sua arma não seria apenas o sabre. Mas não é só no olhar que ela se expressa, que ela se aprofunda. É também na voz. A americana, a primeira da história do país a competir em uma Olimpíada vestindo o hijab, é uma das personagens mais fortes dos Jogos do Rio – e simboliza uma característica que se espalha por várias e várias companheiras de esgrima: a capacidade de fazer reverberar a força feminina escondida por baixo de máscaras em um esporte que quase ninguém vê.

“Quero quebrar normas culturais” – Ibtihaj Muhammad

Ibtihaj é emblemática por concentrar tantas mensagens em uma personagem só. Não é apenas uma muçulmana defendendo os Estados Unidos; não é apenas uma muçulmana defendendo os Estados Unidos sem abrir mão da vestimenta que simboliza sua fé; não é apenas pioneira; é tudo isso e também uma mulher disposta a colocar dedos em feridas, a dizer o que lhe dá na telha, a usar o esporte para abrir mentes.

– O que quero não é apenas desafiar os conceitos errados fora da comunidade muçulmana. É também dentro dela. Quero quebrar normas culturais. Quero mostrar a jovens muçulmanas que é importante ser ativa, que é importante praticar esporte.

Em tempos de Donald Trump, a figura de Ibtihaj virou símbolo político. Depois de ser eliminada nas quartas de final de sua competição, a americana afirmou que espera ter mudado a visão do candidato republicano à presidência dos Estados Unidos – na campanha, ele vem fazendo repetidos comentários agressivos contra comunidades de imigrantes, sobretudo muçulmanos. “Como você pode não ver que os muçulmanos são iguais a todos os outros?”, questionou a esgrimista.

Olga Kharan (Foto: Getty Images)

Olga Kharan, da Ucrânia, chora ao ganhar o bronze. Ela ficou atrás de duas atletas da Rússia, país contra o qual fez parte de um boicote por protesto políticos (Foto: Getty Images)

O tom ativista não é exclusividade dela. No palco em formato de xis da Arena Carioca 3, que recebe até quatro duelos ao mesmo tempo, cruzam-se histórias parecidas. É o caso da ucraniana Olga Kharlan, bronze no sabre no Rio. Ela tem forte participação política em seu país, envolvido em conflitos com a Rússia. Em 2014, auge da crise da Crimeia, fez discursos pedindo a união de todos os ucranianos – e em seguida participou de boicote de esgrimistas a um torneio sediado na Rússia. Na última terça-feira, dividiu o pódio justamente com duas russas – depois de ser eliminada na semifinal por uma delas, Yana Egorian, que ficaria com o ouro.

Mais famosa que Kharlan é a venezuelana Alejandra Benitez (sabre e florete), que se tornou ministra do esporte no país em 2013 – e denunciou esquemas de corrupção antes de abandonar a pasta. Ela já competiu com uma imagem dos olhos de Hugo Chávez, finado líder do país, em seu uniforme. É amada e odiada em sua terra pela agressividade como lida com a política. Considera-se uma radical.

– Somos aguerridas. Somos lutadores. Temos um esporte de combate. As mulheres atletas têm se caracterizado por levantar bandeiras políticas. Mais do que os homens. Eles ficam no entorno: nós queremos ir adiante. Somos muito analíticas. Somos agressivas. É um esporte estratégico, em que é preciso ter pontos de vista, em que tem que pensar antes que cheguem a você. E isso ajuda na política. É se antecipar ao que vão fazer e saber como agir. É analítico, é tático – afirma a venezuelana.

Alejandra Benitez (Foto: Reuters)

Alejandra Benitez, da Venezuela, se considera uma política radical. Ela foi ministra do país e adora Chávez (Foto: Reuters)

Alejandra Benitez é um caso notório de engajamento escancarado. Mas há ações bem mais discretas em outras esgrimistas. É o caso da tunisiana Sarra Besbes, que em 2011, na Itália, não aceitou enfrentar uma atleta de Israel, Noam Mills. Foi para o duelo, porque seria suspensa se não fosse, mas não se moveu. Ficou parada, esperando os golpes, como sinal de protesto à ação de Israel no Oriente Médio. A israelense deixou o embate em prantos, e a tunisiana depois diria:

Sarra Besbes (Foto: Getty Images)

Sarra Besbes, da Tunísia: no passado, não aceitou enfrentar uma israelense, que saiu em prantos do duelo (Foto: Getty Images)

– Vocês não podem imaginar do que fui chamada. As atletas me davam olhares muito hostis, de raiva mesmo. Mas penso que eles também deveriam pensar nas crianças palestinas, vítimas inocentes da barbárie israelense.

Quem pensa nas crianças palestinas é outra esgrimista israelense, Delila Hatuel. Ela mora em uma cidade chamada Acre, em seu país, e lá treina pequenos futuros esgrimistas – tanto judeus quanto palestinos. Mas Hatuel não estará no Rio. Ela conseguiu classificação pela Federação Internacional de Esgrima, mas seu país alegou que os critérios não eram suficientes e decidiu não enviá-la ao Rio.

– Não me deixam representar o país – disse ela em junho.

Hatuel, se estivesse no Rio, competiria no florete, que encerrou nesta quarta-feira a série de provas individuais da esgrima feminina. Foi justamente a modalidade que mais histórias fortes reuniu.

Esgrima (Foto: Getty Images)

Histórias se cruzam no palco em xis da Arena Carioca. Abaixo, Prescod enfrenta Guyart (Foto: Getty Images)

Esgrimistas e ativistas

Foi por um pontinho que Elisa di Francesca não levou mais uma medalha de ouro no florete. A derrota de 12 a 11 para Inna Deriglazova, da Rússia, impediu o terceiro título da italiana – campeã no individual e por equipes em Londres. Doeu nela a derrota na final. Mas não doeu tanto quanto as agressões sofridas quando começava a engatar sua carreira na esgrima – e que quase a retiraram do esporte.

Elisa di Francesca (Foto: Getty Images)

Elisa di Francesca ganha terceira medalha olímpica. Opressão de namorado quase a retirou do esporte (Foto: Getty Images)

Elisa era uma jovem vivendo seu primeiro relacionamento quando passou a sofrer ameaças do namorado. Ele não gostava de vê-la praticando esgrima porque simplesmente não gostava de vê-la convivendo com outras pessoas. Di Francesca, aos poucos, foi se afastando do esporte. Até que a situação alcançou seu limite: ela foi agredida fisicamente.

Anos depois, a esgrimista revelou a história ao público e se tornou um símbolo, na Itália, da luta pelo fim da violência contra a mulher. Um símbolo como Nzingha Prescod, dos Estados Unidos, quer ser para as negras.

Saída do Brooklyn, ela adentrou um esporte majoritariamente branco. Seu plano é ser para a esgrima o que sua maior referência, Serena Williams, é para o tênis: alguém capaz de afirmar a raça negra em um espaço que lhe foi rejeitado por muitos anos. Mas o caminho é longo: segundo Prescod, é comum que perguntem, em competições de vários esportes, qual modalidade ela pratica no atletismo – como se uma mulher negra tivesse que ser necessariamente do atletismo.

Prescod, esgrima (Foto: Reuters)

Mãos negras de Prescod representam EUA em esporte majoritariamente branco (Foto: Reuters)

Prescod avançou até as oitavas de final do florete. Fez um duelo duríssimo contra Astrid Guyart, da França. As duas levaram cartões amarelos e chegaram a trocar empurrões. E a força da francesa não surpreendeu. Afinal, ela treina esgrima quando não está… construindo foguetes.

Guyart é engenheira espacial. Trabalha na Air Bus. Seu projeto do momento é em cima do Ariane 5, um foguete lançador que tem como missão levar satélites à órbita. Basicamente, ela constrói foguetes de manhã, constrói foguetes à tarde, treina esgrima à noite.

Nesta quarta, a francesa eliminava a americana enquanto ali do lado, pertinho delas, a húngara Aida Mohamed se despedia da Olimpíada. De sua sexta Olimpíada. Aos 40 anos, ela iniciou sua trajetória olímpica em Atlanta-1996, quando três meninas que também estavam na competição de florete no Rio sequer eram nascidas.

Enquanto Ainda Mohamed caía em um palco, Elisa di Francesca avançava em outro, e Inés Boubakri, da Tunísia, vencia em outro. As duas se encontrariam nas semifinais e fariam um duelo de persistência. Pois se a italiana teve que superar até agressão física para seguir no esporte, a tunisiana teve que encarar uma lesão de tendão que a deixou sem poder caminhar. E o que ela fez? Passou quatro meses treinando sentada. Dois anos depois, terminou em sexto nos Jogos de Londres.

O ouro no florete ficou com a russa Inna Deriglazova, e não foi exatamente uma surpresa. Ano passado, jogando em casa, ela foi campeã mundial. A esgrima entrou com mais força em sua vida nos últimos seis anos, mas ela já praticava o esporte em idos da década passada. Inclusive em 2009, quando resolveu ir treinar uma semana depois de dar à luz sua filha Diana.

Esgrima (Foto: Getty Images)

O movimento de Elisa di Francesca e Inna Deriglazova na final do florete (Foto: Getty Images)