Um dia você tem de deixar tudo para trás para sobreviver. Talvez não dê tempo nem de levar nada, apenas lembranças dolorosas. Nem mesmo algo importante como roupa, comida, remédios. Se você fosse obrigado a fugir, o que levaria? Atualmente, 65 milhões de pessoas estão passando por isso. São os refugiados. Em apoio a eles, as atrizes Cate Blanchet, Keira Knightley, Juliet Stevenson e os atores Peter Capaldi, Stanley Tucci, Chiwetel Ejiofor, Kit Harington, Douglas Booth, Jesse Eisenberg juntamente com o escritor Neil Gaiman se juntaram para o filme #WhatTheyTookWithThem, feito para o Facebook da Agência de Refugiados da ONU (ACNUR).
O texto do filme (veja a tradução abaixo) é um poema escrito pela dramaturga e escritora Jenifer Toksvig. “What They Took With Them” é inspirado nas histórias dos refugiados. Pelos objetos mencionados, a tristeza da perda da própria identidade e liberdade. “O ritmo e as palavras do poema ecoam o frenesi, o caos e o terror de ser forçado subitamente a abandonar seu lar, pegar o pouco que você consegue carregar consigo e fugir em busca de segurança”, disse Cate, embaixadora da Boa Vontade do ACNUR, em um comunicado. A campanha, além de mostrar a dura realidade destas pessoas, pede para que todos assinem uma petição para cobrar dos países, abrigos seguros onde os refugiados possam morar, além de ter acesso a educação e trabalho.
Tradução
O que eles levam consigo (What They Took With Them)
Carteira (vazia). Carteira, carteira, dinheiro, moedas, centavos. Laterna, apito, mira laser – para enxergar mais claramente fora, no mar. Três bolsas. Uma bolsa. Um saco. Sacola de plático amarelo para papéis, fechada com fita adesiva à prova d’água e cartões amarelos para refugiados, e carteira de identidade. Histórico de serviço no Exército, e alguma informação oficial do governo. Diploma: eletrônica. Diploma do Ensino Médio. Passaporte. É possível se você tiver pode conseguir um bilhete caro de viagem. Falso.
Bandeira. Bandeira. Bandeira nacional. Flash drive, laptop, telefone. Celular, número de telefone, número de telefone, número de telefone. SIM card, um de reserva, telefone, telefone, smartphone com Skype e Facetime, fone de ouvido, carregador, carregador, adptador de tomada. Chave de casa, chave de casa, chave de casa.
Nós sofremos demais. Eu quero descobrir como ser uma pessoa de novo.
Analgésicos, analgésicos, remédio para enjôo. Bengala. Bengala. Bengala branca (para cegos). Cadeiras de rodas. Seringas para uma emergência. Curativos, curativos, artigos de higiene pessoal, pasta de dentes. Escova e pasta de dentes. Cortador de unhas. Pente. Shampoo e gel de cabelo. Coisas para fazer a barba e filtro solar e pomada para queimaduras de sol e remédio para epilepsia do filho: uma pílula pra cada dia. Carteira de vacinação do bebê.
Creme facial clareador. Quero minha pele branca e o cabelo esticado. Não quero que saibam que sou refugiado. E se alguém me denunciar para a polícia porque sou imigrante ilegal? Mas não se for branco. Não estou certo?
Roupa tracional, roupa de inverno, roupa de bebê, roupa favorita, roupa suja, roupa molhada, camadas de roupas.Calças, calças, calças. Máquina de costura: é minha vida, meu sangue. Quatro vestidos, uma muda de roupas. Um par de jeans floridos, que eu usei em uma festa e não usarei até ir em outra. Uma camiseta, uma camiseta e um par de sandálias desaparecidas. Um par de sapatos, um par de sapatos, novo. Nunca usado.
Um hijab, presente de uma amiga. Meu lenço preferido, com caveiras nele: eu adoro a cor. Meu turbante. Meu turbante é o meu guardião. Agora protege a minha identidade e a minha fé. Sem ele sou vulnerável. Lenço de cabeça, de alguém que morreu no conflito. Um chapéu para o bebê. E meias para o bebê. Uma fralda. Só uma. E papel higiênico. Uma jaqueta para aquecer. Alguns tem um colete salva-vidas. Outros não.
A coisa mais dolorosa sobre ser um refugiado é acordar um dia e perceber que perdeu toda a sua liberdade, que não pode mais decidir nada sobre sua vida. É como se tudo tivesse se fechado na sua cara, então não há mais nada além do mar. Não tem nada além do mar como caminho para partir e ser livre.
Cigarros: carteiras, pacotes, isqueiros. Cachimbo. Ginseng. Galão. Leite. Água filtrada. Garrafa de água. Água. Água em toda parte. Metade de um litro de água para uma viagem de uma semana. Lata de óleo. Limões. Limões. Datas. Datas. Datas. Biscoito, bolachas, bolachas, carne enlatada. Chá para os outros do barco: estávamos com sede, cansados e com medo. Eu fiz um pouco de chá. É o que nós fazemos: construímos uma família.
Comida de bebê, marshmallow, pão que ainda não estava totalmente assado. O homem que nos levou não nos deixou terminar. Fogareiro para cozinhar para as crianças. Um homem trouxe apenas uma caneca. Eu fiquei com vergonha de pedir um copo emprestado todos os dias só para tomar água. As pessoas se cansam de toda hora pedirem coisas, às vezes elas dizem não. Mas agora eu tenho meu próprio copo. Isso me deu independência. Não importa aonde vá.
Carpete de plástico, tapete, tapete, travesseiro. Tenda de pele de animal. Um pedaço do cimento da casa. Um pouco da terra do jardim, embrulhado. Solo sagrado. Livro sagrado. Texto sagrado. Rosário e hóstia. Rosário. Hóstia. Rosário. Meu capuz escondia uma chave para o medalhão contendo tudo que é essencial para um casamento. Anéis, anéis, pingente, anéis, aliança da mãe. Eu perdi a minha num bombardeio. Então minha mãe me deu a dela.
Meus brincos. Eu faço jóias. Todas jóias do meu povo. Isso simboliza liberdade. Ninguém me diz o que devo vestir. Medalha de coração, medalha de coração, medalha da Virgem Maria. Pulseiras. Pulseiras. Pulseiras. Não, pulseiras não são as minhas coisas favoritas. São da Nancy. Ela é a minha boneca. No dia que saímos minha mãe a colocou em cima da cama para que não a esquecêssemos mas, na confusão, ela ficou para trás. Não me importo. Ela continuará vigiando.
Relógio, digital e analógico. Retrato de família. Fotos. Fotos. Foto do meu pai. Lembranças do meu pai. Não tenho nada da minha casa. Tudo foi quebrado na luta. Nós fugimos em dez minutos. Eles destruíram tudo em volta da minha cama de doente. Os vizinhos ouviram os gritos e vieram e me carregaram para fora.
Eu carreguei as duas crianças em cestas amarradas num tronco sob meus ombros. Eu levei minha virgindade além do mar, nós nos cobrimos de vômito para que os piratas não nos tocassem. Eu escapei com meus filhos. Irmã. Irmão. Marido. Esposa. Eu escapei com minha alma. Com meu sorriso. Com minha vida.