30/08/2016

Bullying

Aos 9 anos, David descobriu que brincar com coisas de menina gera muito preconceito.

Aos 9, chamado de gay

30/08/2016

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O que acontece quando seu filho é chamado de ‘gay’ na quarta série

Por Martie Sirois

Este artigo foi originalmente publicado pelo HuffPost US e traduzido do inglês pelo Brasil Post em 29/08/2016.

Acho que era inevitável. Mas esperava que não acontecesse. Meu filho de 9 anos tem consciência de que a maioria da sociedade acha inadequado que um menino tenha “coisas de menina”.

Embora ele tenha escolhido corajosamente uma mochila que combina com sua personalidade (gatinhos, corações e cupcakes explodindo em forma de um arco-íris brilhante), ele é excluído pelos amigos da quarta série.

Quase do dia para a noite ele foi obrigado a aprender a verdade cruel dos estereótipos de gênero. Na nossa casa, não temos brinquedos “de menino” ou “de menina”. Na nossa família de cinco, o entendimento é que temos apenas “brinquedos”, e todo mundo pode brincar.

Meu filho não se parece nem age como os outros meninos da idade dele. Aos nove anos, ele se identifica como “gênero-criativo”.

Isso significa que ele não quer mudar sua anatomia ou ser menina; simplesmente prefere as coisas que são marqueteadas para elas (como roupas, pijamas, sapatos, jogos, brinquedos, filmes, decoração e acessórios, só para mencionar alguns exemplos). E prefere estar entre as meninas.

Embora tenhamos a sorte de que a maioria das pessoas da escola do meu filho sejam legais, e apesar de ele receber vários elogios por causa da mochila, ele também é isolado.

É alvo de palavras maldosas, olhares tortos e frieza. Não só por causa da mochila, mas pelo que ela representa: sua personalidade.

Ela está nas sutilezas – como ele se retrai quando aparece um inseto, como dá gritinhos agudos quando está empolgado, como prefere meias três-quartos coloridas para usar com shorts. De alguma maneira isso está no DNA dele e o torna quem ELE É.

No mês passado, a frase foi ouvida pela primeira vez. Na hora do almoço, outro menino da quarta série passou pelo meu filho no refeitório e disse: “Você é gay“. Meu filho não respondeu. Ele ficou chocado e não sabia o que fazer.

Mas, quando me contou a história depois, estava morrendo de vergonha, se segurando para não chorar. Fiz a única coisa que sei fazer – o abracei, o ouvi e disse:

1) Não há nada errado com “gay”;

2) As palavras dos outros não te definem;

3) Por favor, continue me contando as coisas. Sempre vou te apoiar. Conversamos sobre o que fazer se aquilo acontecesse de novo, mas é sempre mais fácil planejar do que executar no calor do momento.

Estava me preparando para este dia, admito. O dia em que meu filho, em vez de ser chamado de “esquisito”, seria chamado de “gay”.

O dia em que associariam as tendências efeminadas do meu filho com homossexualidade, sendo que a sexualidade nem sequer está no radar dele. O dia em que usariam a palavra “gay” como o xingamento definitivo – um meio de intimidação, uma tentativa de emascular, humilhar, destruir outro ser humano que não se conforma a estereótipos de gênero; uma maneira de comunicar desgosto, nojo e intolerância.

Isso me irrita em vários níveis, mas principalmente porque meu filho sabe que a palavra “gay” não significa “burro”, como pensam várias outras crianças. Ele sabe o que a palavra significa porque temos vários amigos da comunidade LGBT em nossa vida familiar.

Ele já ouviu um deles falando do tormento que foram seus anos na escola. Ouviu histórias sobre as aulas de educação física, quando os meninos atléticos se impõem sobre os nerds, fracotes ou, especialmente, os efeminados. Também ouviu a história de outro amigo nosso que saiu do armário no ensino médio, nos anos 1980, quando a ameaça da Aids era combustível para a paranoia ignorante de nosso país e adolescentes gays eram expulsos de casa.

Ele sabe o tratamento terrível que essas pessoas enfrentaram, as agressões verbais e físicas que sofreram de parentes ou amigos da escola, às vezes de ambos.

E agora – agora –, ele sabe do massacre na boate Pulse, em Orlando. Pulse, um refúgio e santuário para a comunidade LGBT, no coração da Flórida. Orlando, a cidade da Disney World e dos sonhos, o “lugar mais feliz da Terra”.

Agora Orlando é conhecida como a cidade onde ocorreu o ataque com mais mortos na história dos Estados Unidos, o lugar onde ocorreu o pior crime de ódio contra a população LGBT americana na memória recente.

Meu filho sabe que nossa família é liberal e que não temos visões ultrapassadas e preconceituosas em relação aos gays.

Ele sabe que, quando começar a explorar sua sexualidade, nossa família tem apenas um pedido: seja feliz e bem tratado. Ele sabe que somos aliados da comunidade LGBT. Ele sabe, mas infelizmente saber não é suficiente.

Fui inocente ao achar que amá-lo o bastante e mostrar aceitação seria suficiente. Estou descobrindo que não é. Porque não importa o que eu o pai dele digamos, não importa o quanto o irmão e irmã mais velha digam que “vai melhorar”, ele ainda recebe uma mensagem clara de políticos, radicais religiosos, pares, adultos, mídia e mais: você não está protegido.

Agora, por causa de algumas palavras ditas negligentemente e que serão repetidas no futuro, meu filho é forçado a se perguntar se ele é gay, porque os outros meninos estão dizendo isso. Apesar de ele não saber o que é uma profecia autorrealizável, nunca o vi tão confuso ou ansioso.

É claro que a adolescência e a puberdade estão logo ali. Mas, além dos anos tumultuados da adolescência, meu filho vai ter a preocupação adicional do: “sou gay?” Ele sabe que nossa família não está nem aí e que vamos continuar lhe dando amor e apoio. Mas estou descobrindo que não vai ser uma fase fácil para ele, apesar de ser tudo OK para mim.

Ele não está protegido; ele estará sujeito a discriminação legal. Ele estará sujeito a crimes de ódio. Ele estará sujeito até mesmo à sutil (mas repetitiva e cansativa) discriminação do dia-a-dia. A maioria de nós não compreende os atos de discriminação mais sutis. Mas, quando você vê acontecendo com seu filho, é extremamente doloroso, porque você percebe que as pessoas nem sabem o mal que estão causando.

Para piorar as coisas, justamente quando acreditamos ter dado passos importantes em relação à aceitação da comunidade LGBT, andamos 40 anos para trás. Meu Estado natal da Carolina do Norte aprovou há três meses uma lei que impede pessoas transexuais a usar os banheiros do sexo com que se identificam.

É a pior lei anti-LGBT da história dos Estados Unidos. Estou fazendo tudo o que posso para combatê-la, ligando e escrevendo para meus deputados, criando um grupo de apoio para pais de filhos LGBT.

Mas sou só uma. Sinto-me sem forças contra a enorme onda conservadora atual – que não se abate e é cega à discriminação aberta (ou sutil) que nossos irmãos e irmãs LGBT enfrentam todos os dias.

O que é discriminação sutil? Ano passado, durante um leilão anual que acontece durante a reunião de pais e professores, meu filho e eu estávamos espiando as cestas que seriam leiloadas.

Ele parou para admirar uma delas: a da boneca American Girl. A cesta incluía uma boneca loira de olhos azuis, duas roupinhas e uma cama, cheia de laços e frufrus. O queixo do meu filho caiu. Ele nunca tinha visto essa boneca antes, e sempre fiz questão de esconder os malditos catálogos que chegavam em casa sem eu pedir. Tinha certeza de que ele iria querer uma, e não posso justificar o preço da boneca, muito menos dos acessórios. Mas lá estava ela, em toda sua glória americana.

Meu filho acariciou o cabelo da boneca, dizendo: “Você é tão linda. Queria que você fosse minha, para eu escovar seu cabelo”. Logo depois, uma mulher passou por nós, sorriu casualmente e disse:

“Oh! Essa vai deixar alguma menininha muito feliz!” Enquanto ela se afastava, meu filho sussurrou: “… ou um menininho…” Um comentário inocente, de uma pessoa bem intencionada, mas mesmo assim destrutivo porque até aquele momento meu filho ignorava o fato de que a maioria das pessoas acha que boneca é brinquedo de menina.

Igualmente, desde o primeiro dia em que ele usou sua mochila brilhante, várias crianças o olham torto. Os adultos também. Um adulto nos abordou no caminho da escola e comentou: “Você ficou com a mochila que era da sua irmã?”, dando risada com a esperteza da sua própria piada.

Meu filho olhou para o chão, envergonhado, enquanto eu dizia para o homem que “na verdade, foi meu filho que escolheu”. O constrangimento foi imediato, e demos de ombro. Depois do 18º ou 20º comentário do tipo, meu filho poderia simplesmente ter decidido esconder a mochila no armário.

Ele poderia ter voltado a usar a mochila antiga – um modelo azul pastel que ele não escolheu -, para passar despercebido entre os outros meninos.

Mas ele decidiu, com coragem e independência, não fazer isso. Todos os dias vejo meu menino da quarta série colocar nas costas uma mochila “de menininha”, como se fosse o escudo de um guerreiro. Esse nobre ato diário de rebeldia me convence de que talvez eu tenha feito algo certo.

Não queria que fosse assim, mas tenho de entender que não posso poupá-lo das acusações de “gay”. Não tenho como impedir que os outros meninos o ignorem, tirem sarro da cara dele ou digam: “Você não pode brincar com a gente”.

Não tenho como impedir que olhem torto. Não posso impedir que ele seja julgado. Não posso garantir a dignidade dele. Como mãe, corta o coração saber que seu filho tem de ser corajoso só para ser ele mesmo. Não tenho como impedir a discriminação sutil que mina a fundação dele, dia após dia.

Não tenho bem como oferecer proteção ou recursos legais contra essa discriminação. Apesar de tudo isso, apesar de conhecer os riscos de permitir que ele seja ele mesmo, não poderia ser de outra forma. Ele é exatamente o tipo de ser humano que quero criar.